Conto

Que bom que você veio

O conto danielesco de hoje nos apresenta (por uma perspectiva, talvez, mágico-realista) como certos conflitos marcam nossas almas imortais. Amemos uns aos outros.


Em destaque, uma lápida com duas rosas em cima. À direita, o título, "Que bom que você veio". Ainda, o rodapé "Daniel Lioti Escritor".

Que bom que você veio

Quanto tempo faz desde a última vez? Você olha para a fotografia meio esbranquiçada à sua frente e se vê amanhã. Logo vai desaparecer também. Como o rosto que está aqui dentro. Uma das poucas fotos que sua mãe guardou.

As imagens da sua infância são um acúmulo de daguerreótipos empoeirados; como se enxergasse pelos olhos míopes de alguém. Quis que você saísse à minha imagem, que você fosse tudo aquilo que não consegui ser. De fato isso ocorreu, mas não como eu gostaria. Não lembro quando começamos a nos tornar tão diferentes um do outro. As memórias de um pai ausente se evanescem mais rápido. Mas aprendi, tarde, que um filho não terá a imagem de mais ninguém a não ser a do Pai.

Pensei que eu havia errado com você, mas errei comigo mesmo: perdi tudo o que depois vim a valorizar. Sua mãe foi quem acertou ao criar você. Tornou-se um bom homem, que faz suas próprias escolhas e paga o preço delas. Achei que jamais poderia perdoá-los por se afastarem de mim, porém aprendi, também tarde, que quem necessitava de perdão era eu.

Deus então me afastou de todos. Você não chegou a tempo. Queria ter conseguido pedir ao menos o seu perdão. Queria ter conseguido dizer que me orgulho de você. Queria ter conseguido agradecer por ter tentado.

Mas agora você volta para tirar as flores secas. Coloca flores novas. Reza. Sua mãe ensinou você bem. Então dá as costas e vai embora. Entendo que a saudade torna-se amarga quando regada a remorso. Ainda assim, nem que seja por uns instantes, enxergo seu rosto. Que bom que você veio.

Tudo o mais

Chi Po, Non Vo

Era uma vez uma cidadezinha na região das Marcas (le Marche) no centro da Itália, chamada Ascoli Piceno. Nela há um prédio com o seguinte ditado na fachada, em italiano arcaico:

Pórtico situado em Ascoli Piceno, Itália, com o aforismo "Chi Po, Non Vo...".
O pórtico é datado de 1529, em números romanos “raiz”, com “VIIII” mesmo.

Para todos lerem:

Chi po, non vo, chi vo, non po, chi sa, non fa, chi fa, non sa; et così, el mundo mal va.

Nunca estive por lá, mas graças ao Google Street View deu para ter uma boa ideia de como é o vilarejo. Gostei tanto desse aforismo que me aventurei a traduzi-lo, livre e desbocadamente:

Quem pode, não quer, quem quer, não pode, quem sabe, não faz, quem faz, não sabe; e assim o mundo se fode.

Rimou bem, né? Pronto, falei.

Saiba mais:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ascoli_Piceno

Conto

Baladilha Arcaica

E aí, tudo joia? O conto danielesco de hoje é meio feérico. Fruto de um exercício de escrita, aproveitei um poema — Baladilha Arcaica, de Manuel Bandeira — para guiar uma incursão nas Terras Áridas de Farsádi, o meu “mundo de campanha”. Espero que curtam a viagem!


Ao fundo, uma viola se destaca. No canto superior direito, o logotipo das Terras Áridas de Farsádi. Mais abaixo, também à direita, o título Baladilha Arcaica. Ainda, o rodapé "Daniel Lioti Escritor".

Baladilha Arcaica

Um conto das Terras Áridas de Farsádi, por Daniel Lioti

Nos confins de Dashayir, um dos inúmeros Emirados Brilhantes, Sua Graça o Emir possuía um palácio que, diziam, era assombrado pelos gênios do outono, que reinam sobre os ventos. Aninhado entre colinas e vales, o palácio estava parcialmente encoberto de areia. As dunas eram constantemente sopradas pelos gênios. Eles vinham e voltavam, mas com ninguém falavam.

Embora tivesse, entre seus epítetos autoproclamados, o de “Senhor dos Quatro Ventos”, o Emir era incapaz de comandá-los. Sequer conseguia falar com eles. Esperava cair em suas graças, deles saber tudo o que ocorria nas nas cercanias e nas lonjuras. E, se possível, conseguir com que a ventania soprasse sobre outras herdades que não a dele.

Para tudo isso, porém, precisava de alguém que encantasse os gênios outonais. Depois de muito procurar por toda Farsádi, o Emir desposou uma jovem cuja tez era tão alva quanto a neve que cai sobre as vastas montanhas que ficam no Sul Distante, de onde foi trazida.

Tão bela era sua nova esposa que o Emir achou por bem afastá-la do seu harém: diziam que a feitiçaria corria em seu sangue, mas que somente conseguiria falar com os ventos enquanto se mantivesse intocada. O Emir, então, trancafiou a esposa em outro cárcere: a torre quadrangular do palácio sob as dunas. Naquele local místico, perfeitamente alinhado entre os quatro pontos cardeais, a jovem ficou sozinha durante anos e anos e anos.

Se os ventos frívolos falavam com ela de volta, ninguém saberia de verdade. Quem a ouvisse conversando poderia pensar que estava tendo devaneios. Por isso, assim foi chamada pelos poucos serviçais que mantinham o palácio sob as dunas: Virgem dos Devaneios.

Sua vista não ia além dos quatro muros que a enclausuravam. Uma torre sem portas, mas com aberturas altas na torre, uma em cada parede, para o vento entrar. A Virgem contava aos gênios que conseguiam atravessar a angustura que caíra nas mãos de um tirano bárbaro que a prendera como a um pássaro. Esperava, outono após outono, pela resposta que, um dia, a libertaria.

Por sua vez, de tanto esperar pelos ditos prodígios de sua esposa, Sua Graça acabou esquecendo o que estava esperando. E o Emir nunca mais pôs seus pés nas areias que soterravam seu palácio.


A lua cheia brilhava alta no céu, numa noite de outono. Uma tempestade de areia fez com que um jovem zagal se desgarrasse de sua tropa, que tocava um rebanho de búfalos vindo de longe. Recuperara um único búfalo. Encurralou-o em uma ruína próxima. Com as costas a uma parede caída, abrigado do vento, o boiadeiro pousou o berrante ao seu lado, e passou a tocar em sua viola uma arcaica baladilha.

Sob o luar, divisou a torre que emergia diferente das agulhas e minaretes que adornavam o restante do palácio; uma matrona austera donzelas exuberantes. Em si dizia: “Que torre feia!”. Mal sabia o zagal que a alma da torre era criatura de rara beleza. Porém, não havia como o boiadeiro enxergar os meigos olhos que lá dentro suspiravam.

Dedilhou notas na viola de sândalo. Um gênio, ali perto, ouviu aquelas notas suaves. Ajudou-as a escalarem as paredes perfeitamente lisas, e adentrarem as aberturas no topo da torre. A baladilha venceu o sopro insistente, carregado de areia do deserto.

Aprisionada por tanto tempo, a feiticeira era rouxinol que desaprendera a cantar. Mas ao ouvir aquela canção, que falava de saudade, recusou-se a ouvir qualquer outra coisa até que os gênios queixosos se calassem. Depois de algum tempo, lá fora o zagal parou de tocar. Lá dentro, a Virgem desfaleceu de suspirar. Adormeceram.

Na manhã seguinte, o boiadeiro abriu os olhos, tocou seu berrante, como se estivesse à frente de mil reses; seguiria seu caminho rumo ao litoral guiando seu búfalo solitário. Contudo, ele jamais saberia que a Virgem dos Devaneios, de quem nunca ouvira falar, finalmente se libertou. Nem que da próxima vez que guiasse seus búfalos pelos sertões de Dashayir, aquela torre anciã, agora desalmada, teria sido reclamada pelas areias dos Brilhantes Confins dourados.

Conto

Operação 1232

Será que existe algo que possa nos salvar das nossas próprias escolhas — e das dos outros? O conto danielesco da quinzena nos apresenta uma possibilidade (?).


Uma paisagem com o céu arroxeado, e colinas ao fundo. Raios de luz rompem as nuvens ao redor. Em destaque, o título Operação 1232. Ainda, o rodapé "Daniel Lioti Escritor".

Operação 1232

Dia de eleição, de novo. Tínhamos aqueles dois maravilhosos políticos concorrendo à cadeira presidencial em segundo turno. Os debates televisivos até então foram pura perda de tempo; em todos eles a gralha chamava a graúna de preta. Na real, tão corruptos eram os dois candidatos que se diferenciavam apenas nos gestos feitos com os dedos.

Diante desse picadeiro, decidi me abster. O que não significava que eu fosse um abstêmio, claro. Só bebendo para aguentar certas coisas. Saquei minha cachacinha do armário e, depois de umas doses, acabei cochilando no sofá. Melhor do que ir até o colégio da esquina para anular ou branquear meu voto.


Monitores gigantescos dominavam o salão escuro. Contra a luz azul-turquesa vinda das telas, era possível discernir figuras que, aos murmúrios, andavam de um lado para o outro acompanhando a totalização dos votos. Uma delas, porém, estava sentada em uma espécie de trono, imóvel, silenciosa. Parecia uma estátua a contemplar os gráficos que se transformavam conforme as informações das urnas eletrônicas eram interceptadas. Não demorou muito mais e o último voto foi escrutinado. Na tela, o resultado das eleições: uma foto da chapa vencedora saltou na tela. A figura até então imóvel ergueu-se de seu assento e proclamou:

— Isso não é aceitável. Iniciar a Operação 1232 imediatamente!


Acordei meio ressacado. Meu apartamento já estava ficando escuro. Fui tomar um copo d’água: geladeira desligada. Levei a mão ao interruptor: sem luz. Fui ver que horas eram: sem sinal de celular, sem internet. Foi quando percebi uma comoção vinda da rua. Ele ganhou? Espiei pela janela da sala.

Havia muita sujeira, detritos, vidros quebrados. Muitos carros acidentados; alguns pegavam fogo, enquanto outros já estavam totalmente carbonizados. Ouvi tiros à distância. Fumaça em diversos tons cinzentos espiralava dos focos de incêndio rua abaixo, onde pessoas corriam de um lado para o outro. Algumas pareciam desmaiadas — mortas? — no meio-fio. Outras tantas saíam às pressas de armazéns e farmácias com provisões; se foram compradas não havia como saber. Em meio ao tumulto, vi bandeiras de um e de outro partido pisoteadas. Alguém caiu de um edifício do outro lado da rua e atingiu a calçada como uma fruta podre.

Horrorizado, só então olhei para o céu. Uma cor arroxeada tomava o horizonte. Nuvens rodeavam uma luz bruxuleante que se aproximava lentamente. A cada segundo, notei que mais e mais pessoas viam o mesmo que eu. O pânico arrebatou as pessoas.

Rompendo as nuvens, a inexorável luz no céu demonstrou ser uma miríade de luzes psicodélicas em volta de disco metálico imenso. Não consegui decidir o que fazer: fugir, me esconder, me atirar pela janela? Quando me dei conta, a escuridão tomara a rua. Mas não havia se passado tanto tempo assim… Olhei para fora novamente, e o disco voador havia se movimentado e estava passando sobre o meu prédio: um escudo perfeitamente liso com quilômetros de diâmetro. Aquelas luzes começaram a piscar num padrão mais rápido e mais intenso. Me afastei da janela. Um som agudo de estática quase rompeu meus tímpanos, quando notei que meu televisor havia ligado sozinho. O barulho cessou, e um anúncio feito em vários idiomas dominava a tela: “Não podemos mais apenas observar“.

Foi quando os clarões azul-turquesa começaram.

Miniconto

Ouro de Tolo

E aí, tudo joia?

Depois de (mais) um tempinho sem produzir, com o recente aniversário do Cunhando Letras eu me animei a trazer um miniconto. Minicontos são desafiadores na medida que são contos (e, por isso, pretendem causar efeitos) em tamanho reduzido (logo, devem fazê-lo com poucas palavras); um excelente exercício para praticar concisão — o famoso “menos é mais” na literatura.

Sem me alongar mais, leia e me diga o que achou de Ouro de Tolo, o miniconto danielesco da quinzena!


Uma pepita de ouro em destaque, sobre um fundo preto, com o título Ouro de Tolo centralizado na parte superior e o rodapé "Daniel Lioti Escritor".

Ouro de Tolo

Um miniconto por Daniel Lioti

O garimpeiro, mergulhado na turva correnteza que escorre da bocarra aberta na serra, colhe o fruto de um veio profundo: vil metal que, de mão em mão, logo chega à meretriz. Lavrado pelo ourives, o custo de um beijo falso transmuta-se em um dragão entre lábios encarnados: fera ávida por mordiscar a própria cauda — ou dobrões incautos.

Notícia

Dia do Orgulho Nerd

E aí, tudo joia?

Dia 25/05 é o afamado Dia do Orgulho Nerd, também conhecido como “Dia da Toalha”. Em primeiro lugar, parabéns para nós! Mas por que esse dia é chamado assim mesmo?

A data tem a ver, principalmente, com uma homenagem dos de O Guia do Mochileiro das Galáxias — escrito por Douglas Adams. A partir de uma passagem desse livro, a galera é encorajada a carregar sempre uma toalha consigo, e a brincadeira pegou. Tirei umas fotinhos para marcar a efeméride:

Pesquisando sobre o assunto, topei com uma imagem que traz uma série de tipos de nerd (no meu tempo tinha essa expressão, ou depreciativamente, CDF; hoje podemos ser chamados de geeks):

Diversos exemplos de nerds (ou geeks) em ilustração do artista Scott Johnson.
Temos aqui alguns exemplos de nerds (ou geeks) em ilustração do artista Scott Johnson. Qual tipo é o seu?

Topei em outro site aqui do WordPress com os Direitos e Deveres dos Nerds. Adorei a ideia, tanto, que resolvi transcrever aqui. Segue nosso Código, começando, claro, com os Direitos:

  1. Ser nerd;
  2. Não ter que sair de casa;
  3. Não gostar de futebol ou de qualquer outro esporte;
  4. Se associar com outros nerds;
  5. Ter poucos ou nenhum amigo;
  6. Ter o tanto de amigos nerds que quiser;
  7. Não ter que estar na moda;
  8. Ter sobrepeso (ou subpeso) e ter problemas de visão;
  9. Expressar sua nerdice;
  10. Dominar o mundo.

Agora, não menos importantes, os Deveres:

  1. Ser nerd, não importa o quê;
  2. Tentar ser mais nerd que qualquer um;
  3. Se houver uma discussão sobre um assunto nerd, dar a sua opinião;
  4. Guardar todo e qualquer objeto nerd que tiver;
  5. Fazer o possível para exibir seus objetos nerds como se fosse um museu;
  6. Não ser um nerd generalista, devendo se especializar em algo;
  7. Assistir a qualquer filme nerd na noite de estreia e comprar qualquer livro nerd antes de todo mundo;
  8. Esperar na fila do cinema em toda noite de estreia, preferencialmente fantasiado ou, ao menos, com uma camiseta relacionada ao tema;
  9. Não perder seu tempo com coisas que não tenham a ver com o objeto da nerdice;
  10. Tentar dominar o mundo.

De parte deste que vos fala, sou fanático por RPG (da imagem acima, eu seria primariamente um D&D Geek). A nerdice danielesca é navegar na internet e procurar livros de regras para ler seus sistemas e cenários, e um dia poder exibir meus conhecimentos por aí. Na real, vou acabar falando sobre isso aqui no Cunhando Letras antes tarde do que mais tarde.

E aí? Você tem uma nerdice? Qual é? Responda aí nos comentários!

Conto

Inferno Astral

E aí, tudo joia? Depois de um tempinho quieto, o Cunhando Letras volta à ativa faltando exatos trinta dias para o meu aniversário — ou, como chamo, os Festejos Danielescos!

O que poderia acontecer com alguém que estivesse ingressando naquele mês aziago que antecede seu aniversário? Leia Inferno Astral, o mais novo conto danielesco, para descobrir (e me diga o que achou)!


No fundo, um mapa astral com algumas figuras astrológicas em destaque. Ainda, o título Inferno Astral centralizado na parte superior e o rodapé "Daniel Lioti Escritor".

Inferno Astral

Um conto de Daniel Lioti

Acordei com o despertador tocando à toda, mas uma dorzinha ecoava no fundo da minha mente, sabe? Queria voltar a dormir, mas tinha que ir trabalhar.

Ao encarar o espelho me dei conta de que faltava muito pra parecer apresentável. Espirros e coriza fluíam em meio a olheiras profundas.

Quando vi a hora, levantei às pressas, pegando a roupa que tinha à mão e jogando no corpo: foi amarrotada mesmo. Saí sem comer, quem dirá escovar os dentes.

Dados os sintomas, passei na farmácia que tinha ali perto. Não fazem mais exame de COVID, mas agora vendem auto-exames; gastei o que tinha na carteira para comprar um. E o fim do mês ainda estava tão longe… Mais um motivo para ir trabalhar.

Embora o resultado tivesse sido rápido, precisei enfiar aquele cotonete no nariz, quase no meu cérebro. Só aumentou a minha dor de cabeça, e pior que nem coronavírus era. Sem chance de ficar em casa hoje. Peguei foi um gripão e, na sequência, um ônibus para o trabalho. Só que não.

Já tinha perdido dois horários, mas enfim veio o latão de sardinhas. Me entranhei naquele aperto onde, não bastasse, torcedores do time rival (nem eram os passageiros a que estava habituado) tocavam flauta adoidado: no fim de semana meu time havia perdido a final do campeonato.

Nem queria saber que horas eram; já estava atrasadíssimo para o trabalho. Quando o ônibus deu um solavanco numa subida, pensei: “Ferrou”.

Mais um pouco o ônibus quebrou. Todo mundo desceu, formando uma aglomeração. A parada era longe dali.

Até outro ônibus aparecer já seria metade da manhã. Até pensei em ir de Uber, mas gastei toda grana que tinha no tal auto-exame que, raios, não deu em nada. Mas tinha que ir trabalhar.

Veio, enfim, o ônibus. Todo o povo que estava esperando subiu, além de todo o povo que estava lá dentro. Mais flautistas apareceram. Mas desta vez havia mais torcedores do meu time.

Nem tinha cabeça pra falar de futebol, de tanto que já doía desde cedo.

No aperto, a minha roupa já estava amassada desde que saí, então não me preocupei mais com o estado em que ficou.

Desci do ônibus já meio moído e sovado. Se não peguei COVID antes, talvez tivesse pego agora.

Arrastando os pés até a firma. De repente, uma pomba mirou bem certinho na minha camisa: além de amassada, minha roupa agora estava cagada.

Nessa caminhada que outras circunstâncias seria rápida e indolor, tropecei num maldito buraco na calçada. Minha carteira voou do bolso e se abriu no chão. Só vi os cartões quicando, girando e, enfim, sumindo na sarjeta.

Ao me levantar, um carro passou sobre uma poça d’água e uma onda amarronzada me cobriu. Mal consegui me evadir.

Já passavam das onze quando consegui pôr os pés na firma. Entrei de lado para esconder a sujeira, mas meu chefe já estava de tocaia. Reclamou da minha falta de asseio e de comprometimento, não necessariamente nessa ordem.

Dei bom dia, me expliquei, me justifiquei, rezei. Depois de ouvir um sermão quase interminável combinei que iria compensar o atraso. Antes de ir pra minha mesa, fui pegar um café.

Finalmente iria colocar alguma coisa pra dentro. Só que não. Estava frio e com borra, e, sei lá, isso me deu mais tosse. Virei o líquido gélido na minha roupa, e acabei derrubando minha xícara favorita, que se espatifou. Fui lá pegar um esfregão pra limpar tudo, quase chorando sobre o líquido derramado.

Triturado pelas engrenagens do Destino, queria era me transformar numa barata e sair rastejando de volta pra minha cama. Espiroquei.

Saí correndo porta afora, onde parecia que uma nuvem negra estava sobre mim. Foi quando a chuva intensificou. Os espirros também. Pior é que ainda tinha que trabalhar.

Voltei, cabisbaixo, para dentro da firma. Descobri que não precisaria mais compensar o atraso: em vez disso, deveria me dirigir ao departamento de Recursos Humanos. Me convidaram a ir, literalmente, para a rua; a rescisão seria só na segunda-feira que vem.

Nem me preocupei mais com a chuva ou com a camisa ou a calça ou os meus pés. Derrotado, voltei à parada de ônibus para catar meus últimos trocados para a passagem. Bem ou mal, finalmente iria poder voltar a dormir.

Enxerguei um exemplar molhado do jornal do dia, que alguém tinha deixado na parada; lendo o horóscopo, vi que isso só seria o primeiro dia de uma tormenta causada pela passagem do Sol pela casa anterior à minha no Zodíaco.

Tchê, eu não acreditava nessa bobagem de astrologia… mas considerando o que me aconteceu hoje, passei a ver com outros olhos. Olhos que começaram a piscar, e enxergar um teto e uma cama bem familiares. Quando me dei conta, meu celular estava tocando a quinta soneca.

Conto

Amigo Secreto

Chegou a época em que, dado o arrefecimento (ainda que passageiro) da pandemia, fervilham os amigos secretos, aquela brincadeira — que uns amam, enquanto outros odeiam — que serve de pretexto para economizar no presente… digo, confraternizar com parentes, amigos ou colegas de trabalho! No conto danielesco de hoje, temos uma dessas festinhas acontecendo.


Ao fundo, sutiãs, calcinhas e caixinhas de presentes alternam-se num padrão. Em destaque, duas pessoas se presenteiam (aparecem apenas as suas mãos). Ainda, o título Amigo Secreto (?) centralizado na parte superior e o rodapé "Daniel Lioti Escritor".

Uma pepita de ouro em destaque, sobre um fundo preto, com o título Ouro de Tolo centralizado na parte superior e o rodapé "Daniel Lioti Escritor".

Amigo Secreto

Um conto por Daniel Lioti

A turma lá da agência está reunida para a já tradicional confraternização de fim de ano, só que desta vez sem horário de verão. Conversas e chopes para lá e para cá, Amanda puxa um embrulho que estava debaixo da mesa. Ela faz cara de que o pacote está pesado: caberia um forno de micro-ondas ali dentro. Então Amanda ajeita a blusinha e entoa:

— A minha amiga secreta é alguém tri bacana…

— Sou eu, sou eu! — Diogo se alvoroçou.

— Ela disse amiga, tchê. — Diz Eduardo, que estava ao lado.

— … que trabalha com Comunicação Social…

— Dãããã, todos aqui são da Comunicação Social, Amanda! — diz Betina.

— … e gosta de falar que é algo!

— Tu te sorteou, Amanda? — diz Diogo.

— Que sem graça, Diogo! — diz Camila.

— Já sei, é a Betina!

Todos gritam e batem palmas. Betina pega o embrulho que, afinal, se mostra leve. Abre com cuidado e tem outra caixa dentro da primeira, e outra dentro da segunda, e mais outra e outra. Depois de cinco caixas, Betina ergue triunfante uma caneca de café preta com o seu nome em letras escandalosamente douradas:

— Amei, amiga! Dá um abraço aqui!

— Gurias, cuidado para não derrubar… putz, tarde demais.

— Eduardo assiste dois copos de chope decolarem da mesa.

Dado o estrépito, um garçom vem logo em seguida, de cara amarrada, e varre os cacos dos copos voadores. Enquanto isso, Diogo bate mais fotos no celular: 

— Essas fotos vão pro Insta!

— Melhor não, vai que o Guilherme veja! — pondera Camila, enquanto recoloca as caixas de presentes uma dentro da outra.

— Agora já foi!

— Vai que é tua, Betina! — diz Eduardo.

— Só se controlem, gurias, senão o garçom vai ficar brabo. Vocês sabem, garçom de cara amarrada significa chope quente.

Betina pega um envelope com motivos infantis:

— A pessoa que eu sorteei como amiga secreta é superinteligente…

— Agora sim sou eu! — interrompe Diogo.

— Aff, Diogo! — diz Camila, virando os olhos.

Flávio, que até então estava vidrado na tela do seu celular, mostra um vídeo para Eduardo, que ri:

— Que coisa mais louca esse vídeo, Flávio! Só tu mesmo, cara! Acho que pode dar certo…

— Mais uma rodada de chopes, pessoal! — fala Amanda, mais afirmando do que perguntando.

— Boa pedida! — concorda Eduardo.

— Quero uma IPA da marca da casa — Camila inova.

— Para mim uma vodca, pura! — Diogo inova de novo.

— Opa! — surpreendem-se Amanda e Eduardo.

— Pessoal, foco! — Betina pigarreia, e prossegue: — Como eu ia dizendo, a pessoa que eu sorteei como amiga secreta é superinteligente e, diferente de vocês, parece superdesligada mas é superatenta!

— Alguém aí falou em super-heróis? — Flávio tira os olhos da tela do seu celular, enquanto o garçom, agora com uma cara melhor, serve as bebidas da rodada.

— Então, quem vocês acham que eu tirei? — Betina olha com expectativa para os colegas. — Dou lhe uma, dou lhe duas…

— Foi o Flávio! — disse Eduardo.

— O quê? O Flávio veio? — ironiza Diogo.

Mais palmas e gritos. Flávio abre o envelope meticulosamente, guardando o papel na sua mochila.

— Oh, um chaveiro dos Vingadores! Tudo bem que esse é o do inútil do Gavião Arqueiro, mas fico emocionado, Betina, por tu me ajudar a completar a minha coleção!

— Ainda bem que ele disse o que era. Eu jamais identificaria. — Amanda comenta com Diogo.

— Me dá um abraço, gurizão! — Betina se aproxima de Flávio.

— Mais uma fotinho pro Insta! — Diogo se posiciona com o celular na mão.

— Cuidado com os copos!

Todos riem.

— Sua vez, Flávio! — convida Eduardo.

— Meu amigo secreto não poderá ser revelado porque, afinal, é secreto. — Flávio diz, empertigado. 

— Vocês vão ter que adivinhar pra quem é o presente que eu trouxe! — Ele puxa da mochila uma lingerie ultraprovocante, vermelha rendada com cinta-liga.

— Opa! Não é isso, esperem.

— Êpa, o que está acontecendo com o teu rosto, Camila? — menciona Betina.

— Tu é um sem noção! Seu tarado! — Camila fica mais vermelha que a roupa íntima que o Flávio havia puxado da mochila.

— O quê? Não, o presente não é esse. Peguei por engano! Tá no fundo da mochila. Devolve!

— Guria, que arraso! Se tu não quer, me dá aqui que eu quero! — diz Amanda, puxando a calcinha da mão de Camila e medindo no próprio corpo. — Vai ficar show em mim!

— Pô, cuidado para não derrubar as coisas da mesa!

Amanda tasca um beijo em Flávio, que por sua vez fica tão vermelho quanto Camila. Antes que Flávio pudesse pegar o presente que estava no fundo da mochila para dar a Camila, uma figura com sacolas de supermercado nas mãos se aproxima do grupo animado.

— Putz! Quem convidou o Guilherme? — Eduardo vira rápido a cabeça.

— Não preciso de convite, meus caros, afinal sou o Chefe.

— Guilherme puxa uma cadeira da mesa ao lado e se senta entre Amanda e Camila.

— Sabia que postar nossas fotos no Instagram não era uma boa ideia. — Betina diz, com um muxoxo.

— Arrá! Vocês acharam mesmo que, combinando um amigo secreto usando o e-mail da Agência, eu não ficaria sabendo?

— Usamos o e-mail pra não ficarmos fazendo chacrinha na sala, tu sabe como isso mobiliza a equipe — Amanda se desculpa.

— Cumprir as metas é que deveria mobilizar a equipe. Mesmo assim eu trouxe presentes, seus falastrões. 

Guilherme abre as sacolas de supermercado e, como se fosse Papai Noel pegando presentes, vai tirando garrafas de um líquido de cor suspeita:

— Um espumante para cada um. Acho que acertei no presente, pois vejo que vocês são bem chegados numa birita. Ho-ho-ho!

— Pô, Gotas de Cristal, bofe? Isso nem é espumante! — reclama Diogo.

— Que forçação de barra! Vai ser pão-duro assim lá longe! — diz Camila.

— Sim, e a validade disso acabou na década passada. — Flávio inspeciona uma das garrafas.

— Nossa, que mal-agradecidos! Vim abrilhantar o rendez-vous de vocês e ficam me tratando com esse desdém.

Guilherme pede um copo ao garçom e vai se servindo da garrafa de cerveja que estava sobre a mesa. Começa a falar de como não tinha ninguém para passar o Natal amanhã, que iria ficar até mais tarde lá na agência, e depois partiria para uma festa exclusivíssima com open bar e tudo. Flávio volta ao seu celular. Os outros vão ficando quietos, fingindo prestar atenção no falastrão.

— Que desanimados! A bebida já fez efeito em vocês? Em mim, sim! Vou ao toalete.

Assim que Guilherme sai do campo de visão do grupo, Eduardo incita:

— Gurizada, é a nossa deixa! Vamos pro boteco do lado, vamos!

— Pro do lado não, vamos mais adiante, senão o mala nos acha — pondera Betina.

— Sim, pelo amor de Deus! — dizem Amanda e Camila.

— Corram para as colinas! — diz Flávio.

Guilherme volta do banheiro e se depara com uma mesa vazia, exceto por meia-dúzia de garrafas de cidra. Enquanto o pessoal debanda para continuar o amigo secreto no outro barzinho, Diogo levanta a sobrancelha esquerda:

— Uma pergunta que não quer calar: o que tu faz com uma roupa íntima feminina na mochila, Flávio? Virou boneca?

— Em vez de se preocupar com o meu pacote, quem sabe confere se tu trouxe o teu… ou deixou para o Guilherme lá no bar?

Diogo arregala os olhos.

Todos riem.

Conto

Hora do Café

No início do mês (01/10) tivemos o Dia Internacional do Café. Tive a ideia de escrever, mas não o tempo, hehehe… mas antes tarde que mais tarde, segue “Hora do Café”, o novo conto danielesco!


Em destaque, uma xícara de café fumegante com o símbolo do Ankh egípcio, sobre uma mesa de madeira desfocada. Ainda, o título Hora do Café justificado à esquerda na parte superior e o rodapé "Daniel Lioti Escritor".

Hora do Café

Um conto de Daniel Lioti

O arrastar de cadeiras. O chiar das máquinas de expresso. O tilintar de copos e xícaras. O abrir e fechar contínuos da porta da frente. O cheiro de café, tão próximo e tão distante. Em linhas gerais essa era a minha rotina. Até que ela passou a frequentar o Café.

A morena parecia uma Cleópatra. Gata mesmo. Sentava-se numa mesinha de canto, que tem lugar só pra uma pessoa; um aproveitamento do espaço da loja. A geometria segue linhas tortas às vezes… ou engenheiros com veia artística. Rabiscava sabe-se Deus o quê naquela caderneta preta.

Eu ficava olhando, preparando meus cafés, dando uma espiada na moça, batendo um papo com outros clientes. Muitas vezes nem via quando ela ia embora.

Às vezes ela ficava um dia ou dois sem aparecer. Mas quando vinha ao Café, era como se nada mais importasse. Curioso é que nunca pedia nada.

Um dia desses ela me olhou de volta. Levantou e veio até o balcão, caderneta em punho. Tremi.

Usava um símbolo egípcio, uma cruz ansada, pelo que pesquisei depois. As roupas pretas davam a ela um jeito punk-gótico fora de moda, mas charmoso. Como meu pai dizia, beleza não tem cor. Eu acrescentaria: nem de roupa nem de pele.

A divindade de cabelos negros encaracolados e olhos amendoados deu um sorriso. Pediu um expresso duplo. Enquanto eu moía o café, tomei coragem:

— Qua-qual o seu nome? Pra eu anotar no copo.

— Não achei que nesta cafeteria vocês fizessem isso.

— Dizem que é uma espécie de rito de passagem ter o nome escrito errado.

Azrael.

— Hã?

Pedi e vos será dado. Esse é meu nome.

— Que diferente! Não vou errar, vou anotar certinho. — Soletrei. Ela confirmou.

Escrevi o nome no copo. Confesso que eu poderia ter compactado o café moído bem mais rapidamente, mas estava intrigado. Aparentemente ela notou, pois se inclinou para perto de mim e disse baixinho:

— Eu sou o Anjo da Morte e estou aqui para colher sua alma… Ao menos essa é Vontade de Deus para você.

— Hã?

— Ocorre que tenho notado que seus cafés despertam alegria nas pessoas. — Rabiscou no caderninho. — Você vai para o fim da fila. A decisão é minha.

— O-obrigado? Mas os anjos têm livre-arbítrio?

No princípio era o Verbo, então naquela época não. Depois da insurreição da Estrela da Manhã passamos a ter autonomia em nossas atividades.

No início achei que fosse uma deusa, agora uma louca… seria ela uma feiticeira? Enfim, algo no tom de voz dela estava me convencendo. Prensando o café, falei um pouco de mim:

— Eu bebia quantidades prodigiosas de café. Meu estômago estava se transformado num buraco negro. Então fui ao médico e ele me disse que deveria eliminar a cafeína. A gastrite iria embora junto. Hoje me contento em preparar cafés como os que sempre gostei de beber.

Quer você coma, quer beba, quer faça qualquer outra coisa, faça tudo para a glória de Deus.

Feiticeira não, talvez uma missionária. Mas Terminei o preparo:

— Aqui está. Espero que não esteja doce demais.

— Por quê?

— Seu nome está escrito nele.

Flertar com a Morte pode ser perigoso. Mas acho que o rosto dela corou. Ainda bem que ela gosta de café e, aparentemente, de cantadas baratas, porque eu não sei jogar xadrez.

— É uma sensação nova ler o meu nome escrito num copo de papel — falou, pegando o copo. Agradeceu.

O próximo passo seria eu pedir o número de telefone, embora eu nunca tenha visto Azrael usar um. Só antes que eu pudesse fazer isso ela saiu porta afora.

Sem pagar a conta.

Notícia

Feliz Aniversário!

Parabéns pra você
nesta data querida
muitas felicidades
muitos anos de vida!

O Cunhando Letras está completando hoje seu primeiro ano de lançamento! Se o blog está de parabéns você pode me dizer, hehehe…

Arte com o título Aniversário do Cunhando Letras circulando um bolo de aniversário estilizado, com uma vela que é o número 1. Ainda, o rodapé "Daniel Lioti Escritor".

Neste ano foram várias postagens — não tantas quanto eu gostaria, mas foi o que o deu —, muitos seguidores, inúmeras curtidas e comentários no blog e nas minhas redes sociais e o mais importante: muitíssimo aprendizado.

Agradeço imensamente por cada um de vocês, meus leitores, fazer parte do meu amadurecimento como escritor e produtor de conteúdo. Como decidi deixar de guardar minhas ideias literárias só para mim e publicá-las aqui, esse blog é de vocês e para vocês!

Muitos anos de vida ao blog sobre todas as coisas danielescas!


Aproveitando a ocasião, todos conhecem essa cantiga tradicional, repetida diariamente (sempre tem alguém de aniversário, afinal) mundo afora e cujos versos transcrevi no início do post, né?

Sabia que, embora esteja na ponta da língua de praticamente qualquer pessoa que fale português, “Parabéns a Você” não está no domínio público?

Por ser uma canção que tem autoria, ela recolhe dinheiro de direitos autorais sempre que é executada publicamente ou usada em obras audiovisuais, assim como quando é gravada.

Talvez seja por isso que existem centenas de versões de canções de parabéns, como esta, famosa aqui nos pampas… ou esta, que teve seus momentos de glória quando berrar mensagens de aniversário em carros de som estava na moda.

Recordar é viver. Dê uma olhadinha nesses atalhos que eu espero para continuar.


A música mais cantada em todo o mundo foi criada nos Estados Unidos em 1875 pelas irmãs Mildred e Patricia Hill, professoras primárias do estado de Kentucky. Elas compuseram uma pequena quadra chamada “Good Morning to All”, ou Bom Dia a Todos para cantar com os alunos pela manhã, antes do início das aulas.

Após cinco décadas, em 1924, uma editora de música norte-americana lançou um livro de  partituras e simplesmente “pegou emprestada” a melodia das irmãs Hill para criar uma música que seria cantada em festas de aniversários.

Assim, nasceu o “Happy Birthday to You”, aquela música extremamente repetitiva que vemos em filmes e séries ianques. Mas a popularização mundial da canção ocorreria em 1933, quando uma peça teatral da Broadway a utilizou.

A versão brasileira foi composta em 1942, quando o cantor Almirante, que apresentava um programa na Rádio Tupi do Rio de Janeiro, promoveu um concurso para escolher uma letra em português da já famosa canção.

Foi aí que Berta Celeste Homem de Melo, que era farmacêutica e poetisa do interior de São Paulo (falecida em 1999), apresentou a composição que conhecemos: infinitamente mais elegante que a original americana, foi escolhida entre cerca de cinco mil letras por uma comissão julgadora formada inclusive por membros da Academia Brasileira de Letras. Bacana, né?

Enfim, seja com uma canção imortal como esta ou outra criada especialmente para essas festas, tem vários jeitos de cantar parabéns pra você, pra mim e pra todo mundo, hehehe… Por exemplo, eu costumo puxar um “ei” bem alto depois da primeira estrofe — mas já vi gente cantar esse “ei” depois de cada estrofe. Fora o é-pique-é-hora, o rá-tim-bum e o com-quem-será.

Falando nisso, alguém canta “Parabéns a Você” de uma maneira diferente? Sua família canta alguma canção especial? Estou curioso! Conte aí nos comentários!

Abração!


Para saber mais:

Saiba mais sobre a canção mais cantada do mundo:

https://super.abril.com.br/blog/supernovas/a-breve-historia-do-parabens-pra-voce-a-cancao-mais-famosa-do-mundo

https://brasilescola.uol.com.br/curiosidades/historia-parabens.htm

https://pt.wikipedia.org/wiki/Parabéns_a_Você

Conto

Fila da Vacina

E aí, tudo joia?

Em época de “saco cheio” generalizado em razão da prolongada pandemia de COVID-19, corremos risco de topar com alguém que de repente descambe para um dia de fúria — ou pior, ser esse alguém! Temos um exemplo nonsense disso no conto danielesco desta semana!


Arte com fotos de olhos de répteis sobre uma foto do CEO do Facebook, tudo em tons verdes. Centralizado na parte superior, o título Fila da Vacina e, ainda, o rodapé "Daniel Lioti Escritor".
Arte com fotos de Matthieu Berroneau sobre foto da Reuters (divulgação).
Longe de mim afirmar que o Mark Zuckerberg seja um reptiliano.
Mas aquele meme ainda circula por aí, então…

Fila da Vacina

Um conto de Daniel Lioti

Filomeno cumpria o isolamento social à risca. Alimentava corpo e mente por meio de aplicativos. Acompanhava o noticiário ávido por notícias de uma vacina. Quando descobriram a bendita fórmula, Filomeno vibrou: finalmente passaria a ter a vida com que sonhava desde que a pandemia assolou o mundo.

Só que o problema passou a ser outro: no ritmo inicial, parecia que pessoas da sua faixa etária só seriam vacinadas no próximo século. Felizmente o tempo passou, e a vacinação deixou de andar a passos de tartaruga. Eventualmente, o Grande Dia chegou.

Mal acordou Filomeno saiu em disparada rumo ao posto de saúde mais próximo, usando duas máscaras sobrepostas. Quando chegou lá, a fila da vacina já dava voltas na quadra. Depois de quatro horas sob um sol escaldante, enfim chegara sua vez. Ia cruzando o umbral do posto de saúde quando uma enfermeira, levantando a mão, disse com voz fleumática:

— Estamos com problema no sistema, senhor. Pode esperar lá fora, por favor?

— De jeito nenhum! Quero me tornar um illuminati, da raça pura que descende dos répteis sobreviventes do Primeiro Impacto! — Tinha arrancado as máscaras. — Não será um sistema mequetrefe que irá me impedir!

A enfermeira pedia para Filomeno se acalmar e sair dali.

— Serei como o dono do Facebook, um ofidioglota! — e seguiu falando cobras e lagartos do sistema de saúde pública.

O sangue-frio da enfermeira estava sendo posto à prova.

— Vim para tomar vacina. Não saio deste posto sem me tornar um deus-crocodilo: um réptil grandão, fortão e bonitão!

A enfermeira revirou os olhos.

— Porra! Vou quebrar tudo! — Àquela altura Filomeno grunhia, rugia; baba escorria pela boca aberta de modo bizarro. — Minha apoteose reptiliana ocorrerá em meio à Destruição Total deste postinho!

A excentricidade do sujeito tenha passado dos limites. A enfermeira então clamou por ajuda. Um segurança que bem poderia ser dublê do Dwayne Johnson surgiu por outra porta e agarrou o paciente arisco.

— Segura firme! Vou aplicar no braço, digo, na pata desse brontossauro. — A enfermeira puxou uma ampola de outro isopor com gelo que estava próximo e preparou a seringa.

Na porta, os próximos da fila esqueceram todos os protocolos sanitários e se aglomeravam para ver o escarcéu. Os protestos de Filomeno foram contidos quando recebeu a picada da injeção.

Em seguida, adormeceu com aquela dose potente de tranquilizante. Talvez continuasse sonhando com o dia em que tomaria a tão esperada vacina.

Nesse ínterim, o sistema voltou a funcionar. A enfermeira então chamou:

— Próximo da fila!

Crônica

A Décima Musa

Arya Stark, por Dimary. A arte está sobreposta a um relógio antigo. Circulando esse relógio, o título A Décima Musa; ainda, o rodapé "Daniel Lioti Escritor".
Arte sobre a linda ilustração da Arya Stark feita por Dimary

Eis-me aqui pensando em um tema bacana para escrever uma crônica no Cunhando Letras, quando topei com a seguinte sentença, que teria sido dita por Luís Fernando Veríssimo (ou Tom Jobim, dependendo da fonte de pesquisa): “A minha musa inspiradora é o meu prazo de entrega.” Curti. A Musa do Prazo já me arrebatou.

Exatamente: não só os artistas sofrem (ou se deleitam, dependendo da fonte de pesquisa) com as visitas da Musa. Ela flerta pra caramba com os advogados: nos lembra sempre de que tudo tem seu tempo na ordem natural das coisas, personificada pela titânide Têmis — a quem também se atribui a balança da Justiça (embora haja controvérsias).

Cumprir um prazo, seja o que for, traz uma sensação de triunfo. Nestas horas precisaríamos de uma voz da consciência no nosso ouvido, como a dos escravos que diziam acompanhar os generais romanos que retornavam de campanhas vitoriosas, repetindo de tempos em tempos que não devemos nos esquecer da laboriosidade e mortalidade ínsitas da natureza humana.

Há de se fazer hoje o que talvez não se conseguirá fazer amanhã; a ordem natural é nascer, crescer (embora haja controvérsias) e, possivelmente envelhecendo antes, morrer. Deus me livre de partir para a Comarca dos Pés Juntos sem antes completar meu legado — tenho uma filha e sou escritor-advogado, mas ainda preciso plantar algumas árvores.

A limitação de tempo pode funcionar (e para mim normalmente funciona) como estímulo à produção artística, jurídica ou o que for — e time is money, oh yeah! Longe de mim dizer com isso que a Musa do Prazo se prostitua pela avidez do lucro: é só uma constatação de que maior produtividade gera maior riqueza (embora haja controvérsias).

Mas há quem já não se renda mais aos encantos da Musa, talvez por estar com a burras cheias do vil metal. Por exemplo, George R. R. Martin. Ele é o escritor mais procrastinador de que se tem notícia na atualidade: já está há uma década devendo o sexto livro das Crônicas de Gelo e Fogo — que começou com “A Guerra dos Tronos” (A Game of Thrones) — e se envolve em dezenas de outros projetos enquanto está escrevendo a continuação da saga (embora haja controvérsias).

Eu me reputo agnóstico, mas acho que chegou o momento de, sim, fazer algumas orações. Uma será para São Pedro, pedindo que deixe o tempo firme a fim de que eu consiga plantar umas mudinhas no jardim. Outra será para Santo Expedito — ou para São Longuinho? — pedindo que um certo escritor de fama e fortuna receba uma visitinha da Décima Musa e, quem sabe, se inspire para não deixar seu legado inconcluso. Afinal, valar morghulis.